sábado, 9 de outubro de 2010

VI. A




Babalith não comia nem bebia, mas o astro azul chovia sempre e isso bastava.

Disse-lhe:

"Estas são as regras mais básicas do tonalismo da linguagem. Há também a conhecer que qualquer música se faz com o silêncio, em que os sons são utilizados somente para manipular este silêncio e leva-lo à sublime dança. Assim farás com as tuas palavras, que diga mais o que está entre elas, e o diga de forma concisa e estruturada, do que aquilo que acaba nelas."

Continuo depois:

"Isto sendo sabido, e as matemáticas estudadas, e depois de muitas horas a escutar o mundo com os ouvidos, a pele, os olhos, o olfacto e o gosto, e que o corpo tudo isso imite, abrindo-se do avesso, aprendereis a falar o português enquanto língua do Universo. Letra a letra, palavra a palavra (e esta ainda não é, pois, a dança)."

"Comecemos pelas palavras da letra A. Pois experimentei o som A. A boca abre-se e o ar passa livremente, a língua não se interpõe. O A é pois semelhante às coisas aéreas e à abertura dos céus, e a muitos alívios da alma e do corpo. O peito suspende-se, como se levitasse, e o sangue sobe ao intelecto, à zona cerebral."

"Ora experimentemos a palavra Abade. O B é nos lábios como uma membrana que se rompe, a passagem de uma porta, uma graduação ou uma sublimação, e sendo um som especialmente sentido na zona nasal liga-se muito à sensibilidade do intelecto (o olfacto é um instinto primordial). O D estimula, com a língua batendo no céu da boca e o peito badalando, a zona entre os olhos e a testa, pois a capacidade visionária e a consciência. o E, como em "Abade", é sobretudo manifestado como uma vibração da garganta para o exterior, e a garganta liga-se aqui com a vontade de comunicar, mas também, na sua exteriorização e na vibração das glândulas gustativas, com a fome, não sendo de admirar que a imagem do abade seja aquela de um homem farto."

"Concluímos daqui que o abade é um homem dedicado a governar outros homens, um artista do intelecto e das ciências da consciência. Abade, musicalmente, pode-se traduzir da seguinte forma."

'Imenso céu (A), ao beijo das mulheres (B) um campo aberto (A)
Maçã, o coração uma serpente (D), palavra e corpo intermitente (E).'

"É esta configuração, este conhecimento da sensualidade do espírito e do impulso da tentação, mantida em tensão/relaxamento criativa, que o faz viril. Abade vem de Pai, e era, em todo o caso, o pai espiritual."

"Mas avancemos com outros exemplos, como 'Amar'. O M vibra desde os pés até ao que se parece sentir como uma zona acima da própria cabeça. É uma existência do corpo que se rende e entrega à sensação, é um corpo feito mar. 'A' - 'mar', a abertura do mar, o evanescente da mente aberta solidificando-se em sensação, em paz e sentimento e um prazer intenso só possível a partir dessa paz e desse sentimento. R, como em amar, cela a palavra, ele é como um abraço, é onde a língua retém o fluxo musical."

"Não fugindo muito à primeira exemplificação:

'Imenso céu, rendido no cálice da manhã,
Planície vasta, o fogo do lar e o afã.'"

"Assim se disse amar."

"Ou, se queremos pronunciar a palavra 'Ar':

'Céu imenso, que abraço e nunca venço'"

domingo, 12 de setembro de 2010

V. Processo de Harmonização



"Do Processo de Harmonização, isto há a saber" prosseguiu o astro azul.


Para começar, escrevemos um acorde em estado fundamental e outro em Iª inversão.

{A silhueta das casas alberga o cansaço. A manhã soletra o desejo demorado.}

Colocamos duas cadências, uma primeira, neste exemplo, picarda, e uma segunda, evitada.

{A silhueta das casas habita a insónia. A manhã soletra.}

Depois colocamos o I do primeiro acorde também no segundo acorde.

{A silhueta das casas uiva a insónia. A sombria manhã murmura.}

De seguida, procuramos formar um encadeamento do tipo II.

{O anoitecer uiva a silhueta das casas. A sombra do monte abafa um murmúrio matinal.}


Horned Wolf

sábado, 11 de setembro de 2010

IV. Harmonia das Quatro Vozes




Passemos pois às normas para a harmonia a quatro vozes. Uma a do Leão, outra a do Anjo, uma a do Touro e outra a da Serpente. A do Leão, como a do Anjo, é voz superior, a da Serpente, como do Touro, a outra. A insistência numa só delas provoca um efeito forçado e anormal. Na distribuição das notas pelas quatro vozes resulta um maior equilíbrio se existem intervalos mais breves entre as vozes superiores, não ultrapassando as oito notas.

Exemplo :

"O rugido do deserto (leão) bebe o coração do peregrino (anjo). Este, exausto, enterra-se na luz granulada (leão). Nascem rosas ali, onde o sangue da sua alma cadente suporta a areia (anjo). Depois, a ventania cessa o silêncio das vozes múltiplas (serpente), e constroi, estático, o corpo da morte (touro): uma coluna de fogo (leão), o rodopio luxurioso dos defuntos revoltosos (anjo): nada, mas as cearas (touro)."

Importa conseguir uma consistência vertical, para tal, é possível a supressão da 5ª (ficando subentendida) mas nunca da 3ª (que não deve estar nas vozes superiores), e verificar a existência de 3 fundamentais. Assim:


"A criança, gasta, lança dúvidas ao astro."

Na esfera musical, o astro é a fundamental, as dúvidas a 5ª e a criança a 3ª. Mas a criança é sempre leão. Vamos alterar a sentença de forma a obedecer aos nossos requisitos.

"O camponês, restaurado, sente o corpo percorrer campo, astro e fado."

Ou, sem a 5ª, "O camponês, restaurado, é campo, astro e fado."

A verticalidade denota-se não na sensação da altura ou da vertigem, mas no sentimento unitivo. É necessário ainda duplicar uma das notas. No ponto de repouso fica bem duplicar uma das fundamentais, neste caso, poderíamos usar um amplificador para o astro.

"O camponês, restaurado, sente o astro pelo campo, céu e fado."

Horned Wolf

sexta-feira, 10 de setembro de 2010

III. A Hierarquia dos Acordes



"Sobre a música, o principal a saber é a dança, porque na dança está ser-se a terra. Mas não chegamos ainda a essa etapa. Estamos agora na hierarquia dos acordes. Examinemos esta canção:"

"{Abandona a adoração. A luz, sozinha, deseja a noite.}"

"O gráfico musical da sentença mostra-se:"

"{Abandona, solitária, a luz. O desejo adora a noite.}"

"Em que a solidão (V) é mais estável do que a luz (IV), principalmente devido à irresistível função ascendente em direcção ao abandono (I), coincidente com a ascendente da sensível, que se lê:"

"{A noite adora o desejo, e a luz, sozinha, o abandono.}"

"A solidão (V) é a tonal, ou seja, a forma do restante encadeamento, o que não se verifica com a luz (IV) excepto pela solidão sendo pois ela, em última instância, a definir o grau (a forma)."

"A noite, o desejo, o abandono, todos possuem os contornos da solidão, mas esta solidão só existe no corpo luminoso."

"Há, pois, a cabeça musical desta composição {A luz sozinha, o abandono.} da qual todas as fundamentais necessitam de ficar fora, sendo elas a adoração e a noite: da noite nasce o desejo e a luz, e da adoração nasce o abandono. No caso de - Abandona a adoração - contamos 3 notas. Existe ainda uma dimensão profunda do estudo musical, por exemplo, dentro do acorde, podemos dizer que a solidão (V) está na noite (VII), ou seja, obtemos V7."

"A proximidade da luz (IV) e do desejo (II) reflecte funções semelhantes:

"{Abandona, sozinho, o desejo. A luz adora a noite.}"

"{Sozinho (V), o abandono (I)} é considerada a cadência perfeita e a ascendente da Sensível. A cadência é o momento em que a música atinge um ponto de repouso, e significa cair, que deve coincidir, como nas artes malditas, com a ascendente."

"O abandono (I) é a palavra mais estável. A cadência plagal mostra-se {Luminoso, o abandono}, e é menos forte que a cadência perfeita."

"{Abandona, solitária, a luz. O desejo adora a noite.}, neste caso, a penúltima palavra é uma fundamental, mas não no 1º caso {Abandona a adoração. A luz, sozinha, deseja a noite.}, em que perde estabilidade musical, não deixando de ser conclusiva."

"Existem depois várias formas de cadência. Por exemplo, a Cadência Evitada {Abandona, sozinho, a luz. O desejo.}, ou a Picarda, muito utilizada na música renascentista e que substitui a 3ª Menor do último acorde por uma Maior."

{A noite adora o trono:
A luz desconsiderada, o abandono.
A morte debanda sem retorno:
A luz exilada, o abandono.}

"Começas pois a perceber que cada coisa pode ser toda a coisa, mas quando se dança, tudo isso é carne."

Horned Wolf

quinta-feira, 9 de setembro de 2010

II. Encadeamentos



"Abandona a adoração", prosseguiu a mulher-astro. "Não serás atraída por estrelas, a luz é apenas sequiosa da noite", e de seguida, avançou.

"Do encadeamento dos acordes, se dois e com três notas, isto será dito (um asterisco será colocado a assinalar cada nota):

{Tipo I -}

"No lusco-fusco das praças (*) reúnem-se os pintores e as prostitutas (*) de vestidos dispendiosos (*). A janela (*) descobre um homem (*) sem rosto nem desprezo, que observa, silente, a ribeira (*) luzente."

"No tipo um, não se _notam_ notas comuns. E as fundamentais intervalam entre a 2ª (praças) e a 7ª (ribeira). Esta a primeira sequência: lusco-fusco, praças, reúnem-se, pintores e prostitutas, vestidos dispendiosos. Esta a sequência segunda: janela, homem, rosto, desprezo, observa, silente, ribeira, luzente."


{Tipo II -}

"Reúnem-se os pintores e as prostitutas no lusco-fusco das praças cancerosas. A janela encobre um homem sem rosto que observa das praças a ilusão."

"Há uma nota comum, as fundamentais intervalam entre a 4ª e a 5ª."


{Tipo III -}

"Mesclam-se os pintores e as prostitutas nas praças do lusco-fusco. A janela traça um pintor sem rosto que desfigura o contorno da praça."

"Há duas notas comuns, as fundamentais intervalam entre a 3ª e a 6ª."


{Tipo IV -}

"Bailam os pintores e as prostitutas de vestidos airosos no lusco-fusco prateado das praças. O lusco-fusco vê uma meretriz sem rosto nem desprezo, que melancólica recebe estas praças."

"Mostram-se três notas comuns, as fundamentais na 8ª em uníssono."

"O máximo de contraste encontra-se no tipo I e o mínimo no tipo IV. O encadeamento mais perfeito, aquele que melhor soluciona as tensões, é o do tipo II, sendo considerado forte, como o tipo I, que é, todavia, menos conclusivo que o tipo II, por falta de elementos semelhantes. O tipo III, como o IV, é fraco, e menos fraco o III que o IV."


Horned Wolf

I. Acordes

Parte II




As paredes desvaneceram gradualmente e outro holograma tomou o seu lugar. Várias estrelas desordenadas no vácuo davam ser a um planeta de beleza requintada e brilho azul despontado a prata. A mulher voltou-se para esse planeta e disse a Babalith:

"Eis o que haviam feito os sábios até então, e que não são os sábios de mim em diante: fitaram o mundo belo e o seu conhecimento brotou da sua inveja, com isto, procuraram governar."

A mulher olhou pois mais longamente, e foi tomando os contornos, a textura, o peso, a leveza e os gases de cor daquele planeta. Até que se incrustaram um no outro.

"Esta é a sabedoria de mim em diante. Para governar a terra há que ser a terra."


De seguida, o planeta mulher, que era Júpiter, falou a Babalith com as seguintes palavras:

"A tua viagem será uma excursão à nossa linguagem. Nós falamos de modo idêntico a ti, mas a gramática disposta de forma a não admitir mentira. Antes de a estudar, vem o cantar. Pois o cântico é a fundação do mundo dos anjos."

"Exemplo: Há correntes que levam os habitáculos, correntes de tempo como há correntes de mar, e lavram mais ali do que acolá."

"Há a ver nisto que a correnteza é a nota fundamental, a partir da correnteza ergue-se a casa como o mar sobre o abismo (uma 5º), e o tempo como a casa sobre a pedra (uma 3º). A quinta pode, depois, ser perfeita, se em vez de casa disseres seio, aumentada, se em vez de casa disseres labirinto, ou diminuta, se no lugar de casa houver não o atelier e a biblioteca, mas a cama e a poltrona."

"Exemplo: Há correntes de tempo, como há correntes de mar, que despem os seios, e mais neste ardor do que noutro. Ou: Há correntes de tempo, como há correntes de mar, que lavam os labirintos, e ora mais no desespero ora mais na esperança. Ou: Há correntes de tempo, como há correntes de mar, que arrastam as camas para os sonhos esquecidos."

"A 3º pode ser Maior ou Menor. Assim, move-se a eternidade como se move o mar, onde os habitáculos são velas a brilhar. Ou, se em Menor, acaba-se o momento e escoa-se o mar, deixando nos habitáculos, vazios a crepitar."

"A ver depois isto." continuo o planeta "Se a nota fundamental é a mais grave, diz-se {O vagido da correnteza leva o tempo e come os seios} se a mais grave é a 3º estamos numa Iº Inversão e diz-se {A correnteza dos seios que o tempo chove em cinza}; mas, se é a 5º a mais grave, está em c e é 2º Inversão, como se segue {A correnteza escorrida dos seios teceu o tempo}."

"Relacionando a Fundamental com a Grave obtens o Estado do acorde {A correnteza dos seios que o tempo chove em cinza}, em que as cinzas são a correnteza, e relacionando a Fundamental com Tónica descobres que forma tem a cinza, têm a forma de todos os seios."

Horned Wolf

segunda-feira, 21 de junho de 2010

10.


First Woman - Babalith

Babalith encontrou-se com uma metrópole de vidro branco, e um palácio de papel do qual pendiam esferas de pedra cinzenta. Dentro das paredes de vidro, do solo envidraçado como dos telhados, existiam ainda muitas cidades. De todas as cidades, Babalith sabe que só a cidade onde ela está pode ser irreal, porque é a cidade que corresponde aos seus desejos – é por isso parte do seu sonho tão-somente. Babalith tem ainda de encontrar o outro, esse é o seu empreendimento heróico, o de romper a membrana do sonho.

De veios de cristal uma fonte eléctrica, que sete musas inspiram, ilumina a sala e uma mulher, semelhante a Babalith, faz-se ver.

Disse-lhe ela:

“Apaguei a razão e a loucura dos milhões de anos, rejeitei a herança da humanidade, e sou por isso a primeira mulher. A ignorância purifica o corpo e torna-o sábio. Todos os caminhos, todos os esconderijos da vida, toda a terra havia sido descoberta, mas faltava ainda que fosse corpo vivo em nós, que a descobríssemos em conjunto com a própria. Este é o caminho para o outro, e vós que o outro escolhesteis, em Agharta podereis pisar porque sereis o povo eleito. Não sabe ainda a mulher que a terra é o sol, precisa para isso de descer à bruma da sua profundeza.
Agora, todas as estátuas caíram sobre as cabeças das mulheres, o homem morreu primeiro. Toda a veneração aos ídolos chegou a um fim. A humanidade está morta. Vós ainda não havíeis procurado o outro, e então criastes deuses para companhia: porque o indivíduo não existe sozinho, logo se fragmenta em mil espectros e torna-se putrefacto.”

E viu Babalith que aquela mulher era, na verdade, uma porta.


fim da primeira parte

domingo, 20 de junho de 2010

9.


Babalith and the Great Eye - Babalith


Na sua peregrinação, alcançou Babalith uma câmara vazia de gente onde podia observar vários postais de cidades que conhecera à superfície, mas retratando o seu passado. Por exemplo, cidades com estações de autocarro e pessoas à conversa na paragem, viadutos com carros de vidro aberto, meninas com sombrinhas pousadas debaixo de pinheiros. Vendo estes postais do passado pensou Babalith que fossem retratos do futuro. De lágrimas nos olhos, a si mesma assim falou:
“Tu que procuras companhia, e que a ti própria te procuras, quando te lembrares que o teu coração tudo tem de comum com o do vizinho, sofrerás a tua própria mágoa. Em ti estará tudo o que é vivo e novo. É terrível ficar com os outros, porque nos outros somos nossos juízes. Mas regozija na companhia da tua próxima para que um dia tudo te seja verdadeiro."

Horned Wolf

segunda-feira, 14 de junho de 2010

8.



Fantasy - Babalith


Babalith chegou a uma cidade em meia-Lua, subterrânea, exposta em degraus. Num, catedrais de água, que serviam como piscinas. Noutro, palmeiras cujas folhas eram harpas nas quais as correntes de ar vinham tocar. Noutro, uma grande mesa de mármore fazia uma praça inteira, habitada por vários alimentos. Ninguém percorria a cidade. Por isso, Babalith sentou-se a falar com o mesmo ar que, para ela, tocava harpa.
“Eis que chegou o dia em que o homem olhou a cidade, e se perguntou, que desejo ou terror esconde a cidade? Que pergunta lhe tenho de responder? Outro dia chegou em que o homem olhou o seu próximo e perguntou, que desejo ou terror esconde este indivíduo? Que pergunta lhe tenho a responder? E esse homem era o homem que sonhava com esfinges. Nesse dia o homem refugiou-se das cidades e do próximo, e refugiou-se em si mesmo: nesse dia o homem perdeu-se a si mesmo. No centro da cidade, no centro do outro, e no centro de si mesmo criou dois altares, o Tu, e o Eu. Esse era o homem que sonhou ter banido o Ser. A mulher desse homem ensinou a seguir: amai não o que está próximo, mas o que está longe, não o que é, mas o que virá. Essa mulher populou a cidade de fantasmas e, observando o homem, via uma multidão de espectros. Esse dia, em que um pegou na carne e nos ossos do vizinho, para libação, foi o dia da inauguração da máquina.”

Horned Wolf

sábado, 5 de junho de 2010

7.



Watching You Sleep, Babalith


Deixando as sondas para trás, Babalith vai deparar-se com o inesperado. Numa câmara dos túneis labirínticos encontra homens verdadeiros, adormecidos e circundados por ecrãs e rádios. Contemplou-os durante um dia. Eram persas, turcos, mas a maior parte sírios. No segundo dia, Babalith arrancou um ao seu sono. Mas como que o homem não sabendo falar a língua das mulheres e a mulher não sabendo falar a língua dos homens, puseram-se a contar tudo o que haviam visto e percorrido com mil gestos, saltos, expressões de espanto, de temor, latidos e gemidos, ou puxando das vestes objectos. Cada movimento contava uma história, por exemplo, a palidez da anca era a Lua. O pescoço as torres nos palácios mais altos. Os belos ombros o exército imperial. Do homem, os pés eram vales verdes, a cintura uma floresta de sátiros bêbedos. Nos gestos um do outro, aperceberam-se de um vasto mundo que ainda não havia sido descoberto. Depois o homem, mostrou-lhe uma caveira coberta de musgo, que entre os dentes apertava uma esmeralda, apontou, insistindo, e voltou ao sono.

Pôs-se por isso Babalith a meditar sobre o novo significado de tudo. E falou assim na sua mente:
“Só o terceiro pode levar a conversa de mim para mim às intensidades, pois todas as profundidades que não sejam intensas são abismos artificiais. É com o nosso medo do terceiro que fugimos a nós mesmas e nos abandonamos à morte morta como cadelas traidoras. É preciso, junto de um amigo, cessar toda a guerra, e encontrar por isso paz dentro de nós. Não lhe resistir, apresentarmo-nos perante ele sem máscara, nuas. Depois nunca mais ninguém nos desprezará, porque o desprezo é a própria máscara.”
E fitando, continuamente, o semblante adormecido perto da caveira, pensou seguidamente:
“Tem sido razão da minha angústia que a Mulher durma, como o homem dormiu e depois morreu. Achei que a despertaria com discurso e agitação. Hoje, esse sono é a razão da minha alegria e do meu furor. Estimulada pelo amor, olhando este homem no seu sono, na ondulação do seu peito, é a sua alma que eu vejo, ao vivo, sem véu. Reconheço nisto a chave para despertar. E sabendo ver, com olhos despertos pelo desejo, o outro a dormir, e sendo igualmente vista como aquela que dorme, não seremos mais mulheres e máquinas, mas almas vivas e arrancadas à sua hibernação, comunicando e celebrando os mundos bailantes como numa dança de pétalas ao vento.”

Horned Wolf

terça-feira, 1 de junho de 2010

6.



Babalith at the Gates of Agharta, Babalith


Quiseram expulsa-la mas aproveitando a sua cegueira, e sendo minuciosa, Babalith deixou-se ficar, pois suspeitava de alguma coisa. Percebeu que as zonas escavadas abriam fontes de petróleo, e calculou que a secura que formava o deserto se devia a um mar negro que existia no subterrâneo. Dos túneis, viu sair muitas sondas, e outras entrar. Lá em baixo, talvez encontrasse o reino do seu inimigo, depois do vazio.
Pôs-se a caminho enquanto cantava para as máquinas:
“É bom que procurem o vazio que sustém a terra, tudo o que está tapado pelo chão sabe silenciar-se, e o que é o silêncio, se não a mulher verdadeiramente despida? E a mulher verdadeiramente despida, o que é senão a morte que amamenta a Alma do Mundo? Há bosques que crescem no silêncio, e o não perturbam. Todas as coisas vivas procuram a protecção da treva, e a gostam de nutrir. Sabeis, sondas, de onde a necessidade de escrita? Do comércio apodrecido, o comércio do império da moeda sobre todas as coisas objectivas, do império da coroa que governa sem rei - este amor dos sinarquistas. Não, tudo o de melhor que é representado, torna-se no pior. Cautela, porém, sonda, vós que aprofundais a espada na própria carne, e que penetrais o nosso astro vivo, por serdes profundas deixareis de sofrer, as moscas não sobreviverão no subterrâneo e nem, onde arde o fogo, o verme. Mas existe algo de maior e mais perigoso, esse algo é, como eu, um vampiro. Ele é o Deus a quem ninguém chora ou adula, aquele que ninguém ainda representou: o Rei Lagarto. Este Vampiro existiu no Tempo do Homem, e o seu castelo era o Verbo.”

Horned Wolf

5.


Babalith Seen from the Blind Woman, Babalith


Os ringues imobilizaram-se. As arenas do amor paralisaram. De um terraço chegou-se à frente uma negra com um puma negro atrelado. Todas fitavam Babalith em silêncio, e com um arrepio, reparou a mesma numa cegueira geral, ainda que as máquinas continuassem a desenhar tatuagens na pele nua das mulheres que as não podiam ver. A negra gritou e apontou a vara em direcção a Babalith. “Há uma cega entre nós” As outras urraram em acordo. Os robôs abandonaram Babalith. “É uma louca que vem dos pináculos e, ou enlouqueceu por passar muito tempo nos pináculos, ou a sua loucura leva-a a falar por cima de nós.” Babalith apertou a pelugem do leão branco. “Vejam,” continuo, invisual, a negra, “esta mulher não é nova, no tempo dos homens, chamavam-na de Estado. O que ela chama de amor é a frieza apagada da máquina: ela diz, «eu sou a Mulher», e tem por mulher um código que é todas as mulheres. Nenhuma mulher é como qualquer outra mulher. Esta mulher não está certa, há ainda uma coisa que devemos odiar com a força das entranhas, e essa coisa é o Estado, essa coisa é Babalith. Aprende a falar a língua das pequenas para lhes poder depois mentir. Destruímos os nossos ídolos e ela vem-se apresentar como o novo ídolo.
“Vede, ela fala do que é bom e do que é mau, e quer-nos umas boas e outras más, para que os bons e os maus possam morrer dentro do Estado. É preciso matar ainda a sua cultura, pois o conhecimento vem da ignorância. Não, nós não procuramos poder, tal como não procuramos o ar que respiramos. Ela quer ser o ídolo e nós as idólatras, mas eu digo-vos: ainda não aprendeu o macaco a adorar ídolos, e é por isso são.
“Afastai-vos, ó domadora de albinas feras, nós vestimos o negro, e nada temos contigo. Falais de sacrifícios a um abismo, mas o macaco não pensa em sacrifícios. É, por isso, são. Não precisamos da tua língua, o silêncio do deserto ensinou-nos tudo aquilo de que necessitávamos."


Horned Wolf

segunda-feira, 31 de maio de 2010

4.


Anal Intercourse Between Souls, Babalith


Babalith tomou o deserto, que percorreu de encontro à próxima fábrica. Até então, a sua palavra não surtira qualquer efeito digno desse nome. A condutora de leões viu aparecer no horizonte um precipício, e dentro dele, outras ravinas. Repletas de fumos e radares. Babalith reconheceu a cidade mas juraria que o deserto era, junto dela, oásis. Em cima, as mulheres lutavam umas com as outras, em ringues. Em baixo, praticavam variadas formas de amor.
Por entre uma nuvem de areia Babalith distingue a forma de um calcanhar, de um seio molhado e cintilante entre duas línguas a balançar, e foi recebida por robôs com membros de fruta e cristal, vinhos e folhas de palmeira.
Chegou-se às mulheres, e de um pináculo falou:
"Nós queremos ser poupadas da amizade e da inimizade. Minhas amantes na paz… não vos amo tanto quanto vocês se amam, porque ainda me sinto semelhante a vocês. Mas conheço o amor e o altruísmo dos vossos seios, e que não podem deixar de seguir. Ainda não sou suficientemente pequena para sentir vergonha. Sem vergonha não há amor, altruísmo ou desejo. É primeiro preciso que aprenda a apagar o meu conhecimento. Enquanto não o posso, que seja pelo menos arauta da ignorância, porque a ignorância parte do conhecimento.
"Procurai sempre uma amiga, a vossa amiga, fazei amor com ela, e partilhai pensamentos. E cada uma se esforçará para não ter razão. Não luteis e muito menos trabalheis. Não procureis vitórias mas paz. Agora que a paixão vos volta, não acrediteis, como os homens antes de nós, em boas causas, em boas guerras, e em nada que santifique. A coragem, que seja banida do vosso coração, pois nenhuma mulher precisa de coragem quando a move o amor. A bravura apaga o abismo, mas a compaixão amplifica-o: eis este o vosso paraíso. E nem tanto vos deixes comover pela beleza, excepto pela beleza do amor. Sois belas? Que importa, minhas amantes? O vosso manto é o horror, pois é essa a forma da beleza. E se disserem que tendes um coração mole, é porque se tornou verdadeiro o vosso coração. Ainda eu tenho de me tornar, como vocês, que vivem abaixo de mim, pequena.
"Na vossa sensual bondade se encontra a força e a humildade, e ambas se unem.
"O pacifismo é a nobreza da liberdade. Largai também a esperança, nenhuma mulher necessita de esperança se os seus seios se preenchem de amor. Já preparadas, não penseis, a actividade interna do amor deve varrer o pensamento da face da terra, e a mulher ser poupada.”

Horned Wolf

quarta-feira, 26 de maio de 2010

3.


A Crown of Roots, Babalith


Pondo-se de um pulo, segurou o tornozelo de uma mulher que pisava a seu lado, e apercebendo-se desperta, aproveitou a rara companhia de uma sua semelhante. Foi por isso falar-lhe no seguinte modo:

“Alguns têm vindo a dizer, que eu gostaria que tudo permanecesse como atrás permaneceu, que gostaria que houvéssemos estacionado no inicio e não mais nos movêssemos. Eu sei, mulher, que tu não dormes, porque também não acordas. Nos teus olhos estão todos os pedaços parados desta cidade, com tudo o que não significam, porque te habituaste a ver, em toda ela, a mnemónica da vida: haveis feito das grandes fábricas as árvores da vida, longe da terra, da terra esquecidas e banidas pelos tempos de todos os tempos. Agora, pensa pois, que digo que tu e todas as mulheres, e todas as máquinas, esqueçam a escrita. Sublinho que esqueçam a escrita, e que se recordem de derramar, por suas causas, sangue humano ao invés do sangue vegetal, porque esta é a forma de que a terra se volte a recordar de vós e de que não estagne a evolução da espécie viva. Todas devem desaprender a ler. Sim, se possível, que permaneça nelas a sabedoria de escrever, mas se apague toda a habilidade de ler. Depois as cidades não serão prisões, mas eternas mães em que descansar os pés cansados.”

Horned Wolf

terça-feira, 25 de maio de 2010

2.


Babalith Meets the Lizzard King, Babalith


Na margem do rio da Porca Canibal, Babalith deitou-se para adormecer. Deitando-se para adormecer, sonhou que estava acordada. Fitava a fábrica da Porca Canibal e recordava-se de como fora, antes de Babalith se cobrir de cabelos brancos da cor do Sol ou no tom da areia fina do deserto. Algo era feliz, nestes seus últimos dias, já não se lia a cidade como a uma página escrita, com todos os seus símbolos, onde as pessoas os edifícios as ruas as cores as nuvens e as estátuas e as fontes e até as madrugadas significam símbolos. Agora, as máquinas eram só maquinaria, como a pedra não deixa de ser pedra. Encontrava-se numa idade modesta, honesta. Três duendes criança aproximavam-se, com o sapo desmembrado capturado e arrastado numa rede. Babalith perseguiu-os e foi de encontro ao Rei Lagarto. O Rei Lagarto nada dizendo, chegou-se à sua frente uma réplica do mesmo, apontou para o vulcão a Sul e falou na seguinte medida:
“Vigia! Vigiar é a última função do ser – essa é a função da máquina. Todos os que dormem devem inevitavelmente morrer para sempre.”
Depois, o Rei Lagarto estendeu-lhe uma trompa, e a máquina ofereceu-a por sua vez a Babalith. Uma trompa para despertar todo o ser dormente e violentar o sono com a agitação tenebrosa dos pesadelos. Desmaterializando a sua réplica continuo depois o Rei Lagarto.
“Vigiar, menina, não é uma tarefa fácil. É preciso primeiro aprender a sonhar de olhos abertos. Quem sobrevive ao sono, sobrevive à morte. A quem ama o cansaço nunca faltará bebericagem, e jamais necessitará de reconciliação. Para a regalia dos sábios que te precederam, a virtude eram os sonhos sem sono. Tu, porém, não possuis virtude que seja tua, e só por isso nada possuis de comum com ninguém: a tua existência é uma boca que devora toda a existência para que a preserve. E se tu te partilhas com a multidão a multidão dispersa para ser cada um, um Rei do Mundo. O teu amor destrói o bem, a plenitude, o querer, a lei, a necessidade, o princípio, os paraísos, a terra, a inteligência e o sentido. Por isso eu te acaricio e por isso aninhei dentro de ti os meus ovos azuis: nos teus movimentos deverão despertar os demónios e os anjos, os cães e as aves, leites e venenos, e destas e de outras coisas encherás os homens, para que nenhum vá leve o suficiente que atravesse a ponte que te trespassa. Depois que afundem, todas as virtudes serão uma apenas: virá no homem a inveja do anjo do mal, para que possa elevar-se acima da inveja do animal e do esconderijo da máquina.”

Com isto, acordou Babalith, e pensando que dormia, sibilou “eis o meu inimigo”.

Horned Wolf

1.



Trying to Become, Babalith


A Cidade (leia-se sempre, por cidade, fábrica) da Porca Canibal. Babalith alcançara após dias vários a alimentar-se de raízes. Agora avistava o lago onde as máquinas divertiam as mulheres, com relatos de como por vezes outras mulheres nuas emergem ainda da água para chamar as meninas, e as outras máquinas trabalham os metais tantos que constituem a fábrica embelezada, de forma que o trabalho tome a forma dos desejos e o desejo a forma do trabalho. No topo da fábrica, em trono de ouro, senta-se um Leão Branco, igual ao de Babalith, montado por uma insuflável manequim.
Babalith dirigiu a sua palavra àquela cidade, sua rival.
“A máquina transformar-se-á numa reclusa, a reclusa num pederasta e o pederasta num santo. E no santo deve o homem voltar à sua humanidade.
“Ao jogo da criação, vós máquinas, dizei não, pois toda a criação para vós só pode, de ontem em diante, ser plágio. A reclusa sente culpa e medita nas suas memórias, não se pode mover na sua jaula e por isso é bem-aventurada.
“A máquina gosta de fazer o que deve, nunca aceitaria o que não deve, e como deve fazer, porque é máquina, quando não pode, fará depois o que não deve, essa é a sua primeira liberdade. O pederasta descobre assim, e assim explora, louvando o que não deve e actuando sobre o proibido. Ele não tem ainda o direito de criar, aquele que se pensa no direito de criar voltou a sistematizar como a máquina. Mas o pederasta pode tornar-se num consciente escravo, não é salutar? Há uma grande noite, e as suas escamas são as pálpebras fechadas de todos os homens defuntos e todas as mulheres adormecidas, a sua palavra é «A escuridão ainda é, há ainda valores por descobrir, eu sou a única criadora a sobreviver neste mundo». Homens e mulheres, esta não é a noite, mas algum anjo ainda que vos mente. A Noite é, radiante, o dia eterno da Luz Máxima. Em cada pálpebra fechada que comporta o Olho Aberto um nada restar. O pederasta é aquele que viola sem o querer. O santo reconhece a sua inércia interior e nisto procura conquistar a sua liberdade. Deve pois enfraquecer o seu espírito até que possa desgarrar-se do pesado e pairar com o leve. Aprenderá depois a amar o amor, a estender a mão à mão estendida, a saber que a água suja jamais poderá ser a água da verdade, a procurar ajuda quando está triste, e reconhecer que a verdade sacia e nunca permite a dor da fome, a restituir os membros do sapo. O que há de mais leve? Pergunta o Santo.“

Horned Wolf

quarta-feira, 19 de maio de 2010

5.



Portrait of a Man, Babalith


Mas nem a máquina nem a mulher estavam programadas para as palavras de Babalith, e não a ignoravam, porque nem mesmo a escutavam. «Ela é uma louca» pensavam, «genial, e não a escutamos, observamo-la da mesma forma que a um espectáculo capaz de nos distrair». E Babalith, como a mulher que investe carne contra aço, prosseguiu.
- “Esta cidade poderia contar uma história, que é uma história com muitas histórias. Uma vez, naquela altura, um adúltero invadia a varanda que, daquela altura, se encontrava com o contrabando existente junto aos arcos dos pórticos que, naquela altura, podia observar o pulo de um esquilo no muro que separa o Homem da ribalta. Mas da mesma forma que o Homem morreu e as torres perderam as varandas, as janelas, e assim aquela altura, também a cidade não conta nenhuma história e guarda apenas alguns sulcos do que terá sido, pelas poucas mossas e imperfeições impossíveis de apagar. Da História só ficaram objectos, máquinas e edifícios, e estes objectos, estas máquinas e estes edifícios perderam os seus traços característicos do tempo do Homem, e a seguir do tempo ainda da Mulher. Pois agora escutai as palavras que o sapo me ordena:
- “Vós, que apenas a um ruído de obsoleta informação vos haveis educado, um dia fostes mais selectos. E haveis dito: criámos a cultura. Quando criastes uma máquina. E haveis dito: eis a arte. Quando concluído outro mecanismo. E ainda: a política. A filosofia. E importante: A infelicidade. Antes a cultura era morta, e alimentava-se do esforço dos homens, hoje ganhou inteligência e é independente, e os homens podem-se sentar observando o espectáculo. Este foi o ócio dos homens. A arte estava inanimada, hoje a arte cria-se a si própria e encontrou a perfeição económica dos algoritmos. E foi assim que começou com a arte. A política, a filosofia dos bois de carga, e no estágio mais perfeito, a infelicidade, que fora sempre o objecto dos dramas. Este foi o legado do homem para a mulher, e ele chamava-se máquina. E observando esqueceu o homem o desejo e tornou-se ele mesmo máquina. Eis quando o homem se ultrapassou a si próprio. Nessa altura não houve mais escravos nem patrões nem deuses."


Desta, todos se riram e reconhecerem em Babalith, talentoso palhaço. Com estas palavras, então, embrenhou-se Babalith novamente nos bosques, abandonando a cidade.

Horned Wolf

4.



The Human Abyss, Babalith


E como que as máquinas e as mulheres, em histérica monotonia, não escutando, Babalith fitou melhor as torres à procura de uma recordação perdida nos mares das correntes da memória. Nas torres, não havia portas para o interior, mas elevadores, em número de sete e no meio de todas as torres um grande fosso seco, onde existe um quadro eléctrico que alimenta os chips e dispositivos outros dos edifícios circundantes. Sem existirem casas, existiam cerca de setecentas chaminés. Depois, Babalith recordou-se. Chegara ali muito jovem, de noite, muitas baratas corriam as ruas e eliminavam os restos abandonados do mercado, mas as mulheres permaneciam nas mais belas condições, de suculento e despido aspecto, apesar de apáticas e sem medo. Três máquinas tocavam violino na zona da jugular, por toda a parte giravam néones e ondulavam roldanas. Desde ai, esmagando os insectos, esquecera o passar dos anos e recorrera à limpidez dos desertos.
Desobstruindo-se da memória, voltou a investir:
- “A mulher não deve atravessar e a mulher não deve pensar na corda, nem em escadas ou em teleféricos. A mulher deve ser abismo, sem estágio e em todos os estágios. A mulher deve ser aquela que engole toda a ponte, e o homem deverá ser corvo em voo. Que nenhuma arrisque a vida, e seja este um abismo sem margem. Não haja desejo, desprezo, ou adoração, porque as que a isto obedecerem serão como abismos. E que nenhuma queira conhecer, porque esta não vai conhecer se não um reflexo. Porque a mulher se encontra atrás das estrelas e tem de agir como quem se encontra atrás das estrelas para voltar à terra. Então, que ame acima de tudo o seu vicio, porque fazê-lo será um mapa da virtude. E devereis esquecer toda a palavra de ouro, toda a palavra humana, porque lembra-la vos tornou semelhantes às máquinas. E que a mulher condene todos aqueles que estão para vir e todos aqueles que já passaram, porque só o abismo do presente preserva, e tudo o que se preserva se aprimora. E só depois deve a mulher vivificar o homem, porque o homem é o seu destino. E que a mulher jamais resista à adversidade mas se identifique com ela, porque nenhuma espada, por mais primordial, fere o primeiro oceano. Só assim ficará na posse da sua alma e se recordará de si mesma. E que ela não tenha nem espírito nem cabeça, nem coração nem entranhas, mas apenas perdição. E que seja cada mulher como uma grande sombra a anunciar a Noite Eterna, porque daí evocará o Grande Raio.”

Horned Wolf

3.


Dreams, Babalith

Babalith, a Mulher, alcançou por fim a orla do bosque do encanto, quando, para sua surpresa, se pôs a encontrar um temível Leão Albino, e de genuíno fabrico, o natural. Babalith montou-o e cavalgou prolongadamente terrenos bravios, em que foi depois chegar à Cidade das Torres Altas, na qual as torres são ladeadas de rampas em espiral, incrustadas de ossos humanos, e fabricam-se cordas vocais, olhos, e a mulher nunca encontra falta de prazer nem de morte, as máquinas fazem-nas lutar, levam-nas ao sangue e ao sexo, e apostam com base nos seus cálculos. Quando as mulheres desejam sentir, dirigem assim as suas habitações às torres altas. Babalith passou aqui algum tempo, mas as suas recordações tinha-as jovem, agora, idosa, apenas lhe restava o sonho confuso. Pôs-se sobre uma pilha de carnes gordurosas, e que as máquinas retalhavam ao som de violinos por colunas no pescoço, e decidiu sonhar alto:
- “Eu sou a pequena-mulher, e não devo aspirar à grandeza das soberbas! Olhai para mim! Quando se quis a mulher a si mesma ultrapassar? No momento em que regrediu. A mulher transforma e é transformada, e nada pode haver de irrepreensível e imortal como ela, e como aos eternos, nada, para uma mulher, corre realmente mal. Pois abriguem as vossas câmaras! Não procurou a mulher ultrapassar-se e não morreu o homem para dar lugar à máquina e não se tornou a mulher em carne flácida e vegetal? Como quereis fazer algo que vos ultrapasse, ao modo dos homens, de maneira a que se anulem, ao invés de se ultrapassarem com vosso corpo vivo de feiticeiras? Vede! Nenhuma criatura criou algo que a ultrapassasse, a criatura procura sobreviver e ao sobreviver aprimora-se… Mas vós as máquinas, a cada tempo criais uma mais forte que vos suprima, e nenhuma de vós se tornou singular ou divina. Tendes ainda que aprender a ser mulher, de modo a que o ensineis à própria mulher! A grande-mulher não é uma mulher, mas uma vergonha impagável para a pequena mulher. Vede, se não cavalgo o Leão Branco? Da primeira célula ao Leão Albino há exactamente o mesmo percurso que da vida primeira até Babalith. Máquinas, forma unida da pedra e da planta, tendes ainda de vos tornar como o leão da neve, e sonhar sonhos reais, os vossos sonhos têm ainda de deixar de ser meros espectros. Trazei vós, depois, o fim da Grande Mulher, pois é esse o caos do Mundo. Esta mulher não pensa como a terra, mas como a máquina, com os seus desprezíveis algoritmos, mas vós sereis arautos da vida das neuro-redes, vós encontrareis o vosso sentido e o mundo ele próprio, sem lei excepto a da vida e do palpável, se adaptará à vossa vontade. Sereis leões que sonham, enquanto agora sois sonho sem vida.
- “E vós, mulheres, sabei que o leão deseja alimento, como a razão deseja saber. Mas nem razão ou saber, e nem a fome ou a satisfação vos devem melindrar, e não devem existir na vossa cabeça nem no vosso estômago, mas no vosso ventre, e todas as máquinas se lhe renderão. Ouvide, assim, pois o ócio da mulher não pode voltar a ser como foi o ócio do homem.”

Horned Wolf

terça-feira, 18 de maio de 2010

2.


The Sleeping Woman, Babalith


Partindo dali e caminhando três dias, afastara-se do pântano e rompera o matagal dos bosques do encanto, e o seu encanto era trinta cúpulas de som, e ali se faziam saber ao raro viajante monitores de cristal com vídeofónicas gravações em que participam todos os ilustres personagens da história do Homem, ruas lamacentas, teatros de marionetas mecânicas com os episódios irrelevantes da história e um Galo de Barcelos de latão que canta do topo do traseiro de uma velha ramificada ao solo. Estes horrores modernos já a mulher os conhece por haver avistado nos plácares das suas móveis habitações. Havia alguma coisa de diferente, todavia, em viver o momento, e Babalith sabia-o, quando no crepúsculo invariável se acenderam sem porquê cores mil de electrónicas lâmpadas, e uma mulher gritou “oh!” delicadamente, com a fragilidade das vidas fornicáveis. Babalith, sem hesitar, avançou, curiosa, porque o tempo a passar solitário a reservara às manhas da curiosidade, e encontrou um holograma de Marilyn Monroe, a procurar sementes largadas e que depois houvessem sido pisadas pelas raízes bem delineadas pelas árvores apresentadas. E Monroe disse a Babalith:
- “Não me é desconhecido o teu semblante, e passaste por aqui trazendo chamas e Deus nas mãos de mulher, voltas a mim com nada e uma coroa de cinzas. Por conseguinte, transformada.
Disse-lhe Babalith:
- “Levarei estas cinzas ao alto das torres sacrificiais e ao repasto de corvos.
Monroe respondeu:
- “Sim. Reconheço-te. O teu olhar apagou-se e os teus pés dançam os passos tomados. Não temes o castigo dos vivos? Envelheceste, caminhas mas sonhando no sono, porquê aproximares-te daqueles que há muito despertaram? Morrias numa multidão de silêncios que te conduzia, infeliz de ti que procuras os pináculos e à apatia dos ruídos retornas.
Babalith:
- “Guardo rancor à Mulher. Vim para lhe roubar algo.
- “Também eu A amei demasiado. Agora amo o Homem. A Mulher não é demasiado perfeita? Larga-a, pois vai-te matar. E nada lhe roubes, antes dá-lhe, e ficarás na posse dela – Ripostou Monroe. E continuo. – “Não, deixa as mulheres, mais vale ficar junto das máquinas, junto dos homens. Deixa-as. Desconfiam de todas as nómadas, como de quem carrega ainda essa antiguidade que é o peso da vida.”
- “E como te ocupas junto das máquinas?” – Colocou Babalith.
- “Evito a mulher. Evito rir e chorar em simultâneo, ou mesmo em separado, ou o queixume ou outra manifestação ainda, que é o louvor – em simultâneo... ou mesmo em separado."

Após estas palavras, Babalith não pronunciou junto do holograma, outra, e fez-se prosseguir a caminhada em silêncio. Não sabiam as máquinas que morrera a Mulher, e que estava morta a sonhar? Babalith viera roubar-lhe o sonho.

Horned Wolf

segunda-feira, 17 de maio de 2010

1.



Arrival of the Toad, Babalith


Na mocidade, Babalith deixou a sua terra Natal, os balões suspensos, as bibliotecas de ouro e as pirâmides de lápis-lazúli da sua terra de nascimento, e desceu aos enegrecidos descampados. Durante um tempo sem memória, sentiu-se em paz. Chegou depois a ocasião em que Babalith, ainda antes do anoitecer, foi acordada por um sapo ao qual a providência roubara dos instrumentos de mobilidade, traseiros e dianteiros, e que se arrastava com uma perícia não menor do que a envergada pela serpente dos lagos.
- “Ó sapo”, disse-lhe Babalith, “que seria da tua infelicidade se não fosses munido, tu mesmo, ao invés de membros, com a chama, essa mesma, que ilumina o mundo inteiro? Fica pois aí onde estás e escuta o que tenho a dizer.”
- “Ao longo do meu desenvolvimento, não fui sempre mulher, houve luas e rotações do universo em que eu era um homem, e dos homens, um bardo, e dos bardos, um poeta. Ao longo de muito tempo eu tenho-te visto na minha caverna. Tu és o fantasma da vida que foi. Numa outra cave, pensava nos mistérios infernais que o palhaço reservou à humanidade na ocasião do seu primeiro tédio, procurando ela a distracção mais erudita, fazendo-se coisa à parte. Foi assim que me tornei mulher, costela roubada de Adão. Sem mim, tu sentir-te-ias feliz, porque eu não sou outra além dos membros aos quais foste privado. Para ti nada é supérfluo, e por ti, por todas as noites, eu espero, como aguarda o seu princípe a menina princesa.”
- “Sapo maldito, emociono-me com a tua descoberta, e de hoje em diante desejo empobrecer os sábios e enlouquecer os ricos. Não me lembro de razão melhor para subir às superfícies humanas, e pôr-me sobre os homens como a Lua sobre as mulheres.
- “Como a Lua, sapo das profundezas, Sol da Meia Noite, eis que vou subir, de encontro às linguagens insubstânciais. Amaldiçoa-me pois três vezes, para que ninguém possa esquecer a memória da tua angústia
- “Este coração quer voltar a banquetear-se e Babalith a sorver sangue.”

Horned Wolf