quinta-feira, 1 de fevereiro de 2018

2042.6


Um clamor passou pela campanha e houve roçar de ossos e ranger de dentes, a prostituta mordia os nós das mãos e Babalith professava:

"Atentai, que o objecto material do vosso temor sou eu, mas o objecto intencional temido pelas vossas mentes é o leão que eu monto. Eu não tenho um leão e um leão eu monto. O limite do poder é o seu uso."

"E se temeis um leão que não está perante vós, que relação haverá entre o medo e o leão? Porque o medo é o leão e é vosso para galopar."

"Assim existis vós no pleroma que dirigis, mas a nada do que é dirigido vos assemelhais, e o limite do ser é o ser, tudo o resto não o tem."

"Agora, é o ser que significando sobre as águas segura as rédeas que comandam os espíritos de todas as coisas, é através destes espíritos que podereis voltar à linguagem. Então abandonareis a causa e abraçareis a razão, deixarás de parte a predição e praticarás o diálogo, pois tudo o resto é uma profanação do nosso espaço sagrado."

"Sabei que, se há diálogo, há animismo, ali aquele conjunto de tintas se apresenta como um santo numa tela, ali aquele tecido orgânico se apresenta pelo nome de cadeira e te pede que te sentes. Se não pudessem as tintas ser outra coisa, ou a cadeira te não revelasse uma função ou falta dela, não seria nada, o mundo é acção e a linguagem o seu negativo, e o limite do mundo é o seu uso e o seu uso é a expressão do ser em relação com o ser. De novo a arca do espaço e do tempo se revela, e a segunda alegoria para a sua chave, pois o espaço surge da extinção da distância. Mas se por um momento tu cais no mundo, e se lhe pertences, abrindo aquele abismo por onde escapa a sombra viva da distância, o reino-para-sempre-esplêndido te será vedado. Assim, é este leão que monto chamado medo para aqueles à vossa semelhança, e esplendor por outros."

quarta-feira, 31 de janeiro de 2018

2042.5


Babalith moveu-se com a prostituta para um vilarejo onde se ajuntavam mulheres mal tratadas pela ausência. Montou uma pira de fogo, sentaram-se, receberam as turbas e assim explanavam. 

"O ouro alquímico existe. Pode ser que se concorde que esta afirmação é falsa. Mas se disser: este ouro alquímico existe, 'este', tem de indicar qualquer coisa. Assim vive tu, mulher, e esse ouro existe, ensina e ele preservará. Olha que há uma lógica da intenção, e ela confluirá, subsistindo, para aquele mar que é a intenção da lógica." 

"Mas, se quiserdes que, além de existente, o ouro alquímico seja real, deverás afirmar 'este não-ouro é verdadeiro em que este ouro é falso. Ainda: Ouro, ou não-ouro. Então, ouro é sempre. Mas chegaste tu à arca do tempo e do espaço. Esta doutrina será inabalável, enquanto te resta tecer o actual. Aqui jaz a arte de demonstrar e todos os que subirem essa escada que é a estrutura da linguagem, ao avistar o astro, devem atirar a escada por terra ou cair com ela. O limite da palavra é o seu uso."

"Escuta isto: uma forma de vida habita a linguagem e nela gera uma pluralidade da sua própria forma e da sua própria vida, ela não brota da línguagem."

"Mas, enfim, um fim a isto. Quereis saber como criar o vosso futuro, e não o mundo, a imortalidade. Primeiro, tendes de esquecer a razão dos vossos eventos, para que mais tarde a possas reconhecer. No seu lugar, examinai a causa. E assim abandona temporariamente a decisão e abraça a predição. Mas um mistério ficará ainda para além de causa e calculo, a de se ser humano, e este é o ponto em que todas as linhas se encontram."

terça-feira, 1 de agosto de 2017

2042.4

Aos dois mil e quarenta e dois anos após Babalith haver adquirido do astro azul a língua mágica que retiraria às mulheres o desconhecimento da fala, decidiu-se por um modo de a ensinar às vulgares. Há alguns anos arrastara uma prostituta velha e bem educada ao País Ninho, onde os insectos e os crustáceos, ausentes do tempo humano, se haviam voltado a agigantar como no Período Jurássico. Colocou depois a sombra dessa mulher a escutar durante muitos anos os sons dos bichos quando falavam sozinhos, com as folhas ou uns entre os outros. Findos os primeiros trezentos anos a mulher voltou, gretada, possuída pela sombra e, face a Babalith, assim falou «Bqd, gl nh... Mn nh -pr t». Com os pássaros e os répteis bastaram cinquenta anos e a sua aluna, provando haver dominado aquela linguagem, pôs-se a dizer «Ff vvv çç zzz, xx jjj rrr! âââââââ». Depois, enviou-a Babalith com as feras e com os bovinos e todos os anos a interrogava. Um dia disse-lhe a acólita, muito vergastada pelo sol e pelo vento «Uau, uía, aiu eu». Haviam-se passado 500 anos ao todo e Babalith sorriu, tomou-se de refeições com ela. Chegada a noite invisual, o total silencio nocturno, proferiu: «aaaaaaa vvvvvvv ddddddd aaaéééêêêiiióóóôôôuuu fffvvv ççzzz xxjjj rrrr bbbppp dddttt gggqqq mmmmmmmmmmmm; nnnnnnnnnnnn» e, certificando-se de que era escutada mas não vista, colocou o capuz negro, estalou e sacudiu as matracas, e prosseguiu com as potências ocultas do bufo do mar à meia-noite, o silvo e o grito prolongado dos pássaros nocturnos «uh uh uh uh uh, b p d r t; zzzzzzz, vvvvvvvvv». A acólita, em pânico, soltou um sopro silente e uma vibração venenosa de serpente, depois principiando a vociferar NNNNNNN consegiu mover-se por via do seu próprio ventre como um símbolo encarnado no movimento dos órgãos vocais. Babalith riu-se «Eneias, a noite desce e nós chorando levamos o tempo. Este é o lugar onde o caminho se divide em dois». Nessa altura, é que soou o ano dois mil e quarenta e dois.

sábado, 7 de julho de 2012

2042.3

Babalith não parou por estas mulheres, seguiu sobranceira ao hospital e no hospital encontrou a sua antiga aluna, uma das suas melhores alunas. O hospital consistia de vários  túmulos abertos ao firmamento, uma inscrição pendia ao vento cinzento fazendo as partes de porteiro, e lia-se "Pelo que esperas para observar o céu?". A aluna de Babalith, como uma parte da multidão, deitava-se ao lado das campas e ficava a mirar o céu e faziam disto o seu estilo de vida. "Ó imortal, tornei-me cansada de conversas negras," disse-lhe esta "e fitando o céu vejo que tudo na terra é como as nuvens, ou como as ondas do mar. Eu gosto de me sentar a ver. É assim que se vive a vida e se é feliz. Ser feliz é a finalidade da Mulher." mas Babalith quis responder-lhe "Ser feliz é o final da Mulher", e pediu antes que a mulher se levantasse e caminhasse com ela, porém, as pernas da mesma cederam e não foi capaz de se manter em pé. "Eis que fitando o céu te tornaste tão rasteira como a lesma" disse Babalith. Enterrou-a, apesar da mulher ainda sorrir.  

2042.2

Abandonando o local, Babalith passou por um grande muro, milhões de pessoas  faziam estadia frente ao muro contemplativamente, e no muro existiam frases que qualquer um podia escrever. A primeira que Babalith viu lia-se assim: "quanto mais se faz por algumas pessoas mais elas esperam de nós e menos dão em troca" e Babalith soube que vivia numa idade de ouro onde a sabedoria não mais pertencia aos estudiosos, aos filósofos e aos sacerdotes. Escreveu depois ao lado "Quando uma mulher mija de pé e para a frente, algumas pingas vão por consequência cair ao lado" e adquiriu ali muitas discípulas.

Na ala leste do muro viu porém uma secção do mural que dizia com uma borboleta: "Eu tenho os sonhos intactos" e despediu todas as discípulas da sua presença e abandonou o muro.

Nisto, passava por uma lixeira onde duas mulheres escavavam, fartas e saudáveis, noutro lugar duas mulheres banhavam-se em notas - mas as notas nada valiam e as mulheres emagreciam.

sexta-feira, 6 de julho de 2012

2042.1

Fazemos agora uma pausa para explicar que se passou tempo e o astro azul, e Babalith sabia agora uma fala  mágica que usava raramente. Passaram-se também dois mil e quarenta e dois anos e Babalith fora professora de muitas mulheres. E entrou num bar feito de mulheres e vendo uma que trazia a roupa limpa olhou-a de cima, e lhe disse esta mulher assim: "não me julgues pela minha aparência pois posso-te surpreender" e Babalith ripostou: "É fácil saber que és burra. Se não julgo, não me surpreendo."

Babalith sentou-se e ouvindo os desabafos do povo reparou como uma ligeireza falsa e podre tomara conta do seu mundo. Uma lhe dizia: "Fulana abandonou-me quando mais precisava, mas é a bondade da vida que retira do nosso caminho os que não pertencem à nossa vitória" e esta foi Babalith trair o mais que pôde, porque quem não é capaz de reconhecer a crueldade menos reconhecerá a verdade, e quem não está com a                  verdade é infértil e impotente nas suas mentiras. E outra mulher disse: "não existem pessoas certas umas para as outras, mas pessoas imperfeitas que encontram alguém de quem aceitem as imperfeições e de quem as suas imperfeições sejam aceites" e a estas Babalith mutilou para deixar ao circo porque antes eram imbecis, sonolentas e inúteis.

Ao canto um bando de mulheres jogava um horóscopo em que cada uma era uma deusa, e Babalith desejou que fossem ao menos animais.

E na telefonia diziam: "milhares de anos de religião levaram-nos à idade média, 200 anos de ciência levaram-nos à Lua", mas Babalith era demasiado inteligente para ter percebido alguma coisa do que acabara de ouvir.

sábado, 9 de outubro de 2010

VI. A




Babalith não comia nem bebia, mas o astro azul chovia sempre e isso bastava.

Disse-lhe:

"Estas são as regras mais básicas do tonalismo da linguagem. Há também a conhecer que qualquer música se faz com o silêncio, em que os sons são utilizados somente para manipular este silêncio e leva-lo à sublime dança. Assim farás com as tuas palavras, que diga mais o que está entre elas, e o diga de forma concisa e estruturada, do que aquilo que acaba nelas."

Continuo depois:

"Isto sendo sabido, e as matemáticas estudadas, e depois de muitas horas a escutar o mundo com os ouvidos, a pele, os olhos, o olfacto e o gosto, e que o corpo tudo isso imite, abrindo-se do avesso, aprendereis a falar o português enquanto língua do Universo. Letra a letra, palavra a palavra (e esta ainda não é, pois, a dança)."

"Comecemos pelas palavras da letra A. Pois experimentei o som A. A boca abre-se e o ar passa livremente, a língua não se interpõe. O A é pois semelhante às coisas aéreas e à abertura dos céus, e a muitos alívios da alma e do corpo. O peito suspende-se, como se levitasse, e o sangue sobe ao intelecto, à zona cerebral."

"Ora experimentemos a palavra Abade. O B é nos lábios como uma membrana que se rompe, a passagem de uma porta, uma graduação ou uma sublimação, e sendo um som especialmente sentido na zona nasal liga-se muito à sensibilidade do intelecto (o olfacto é um instinto primordial). O D estimula, com a língua batendo no céu da boca e o peito badalando, a zona entre os olhos e a testa, pois a capacidade visionária e a consciência. o E, como em "Abade", é sobretudo manifestado como uma vibração da garganta para o exterior, e a garganta liga-se aqui com a vontade de comunicar, mas também, na sua exteriorização e na vibração das glândulas gustativas, com a fome, não sendo de admirar que a imagem do abade seja aquela de um homem farto."

"Concluímos daqui que o abade é um homem dedicado a governar outros homens, um artista do intelecto e das ciências da consciência. Abade, musicalmente, pode-se traduzir da seguinte forma."

'Imenso céu (A), ao beijo das mulheres (B) um campo aberto (A)
Maçã, o coração uma serpente (D), palavra e corpo intermitente (E).'

"É esta configuração, este conhecimento da sensualidade do espírito e do impulso da tentação, mantida em tensão/relaxamento criativa, que o faz viril. Abade vem de Pai, e era, em todo o caso, o pai espiritual."

"Mas avancemos com outros exemplos, como 'Amar'. O M vibra desde os pés até ao que se parece sentir como uma zona acima da própria cabeça. É uma existência do corpo que se rende e entrega à sensação, é um corpo feito mar. 'A' - 'mar', a abertura do mar, o evanescente da mente aberta solidificando-se em sensação, em paz e sentimento e um prazer intenso só possível a partir dessa paz e desse sentimento. R, como em amar, cela a palavra, ele é como um abraço, é onde a língua retém o fluxo musical."

"Não fugindo muito à primeira exemplificação:

'Imenso céu, rendido no cálice da manhã,
Planície vasta, o fogo do lar e o afã.'"

"Assim se disse amar."

"Ou, se queremos pronunciar a palavra 'Ar':

'Céu imenso, que abraço e nunca venço'"